1.
Rafael, nome fictício, é
um baiano cuja idade deve variar entre 40 e 55 anos. É magro, poucos cabelos
amarrados num rabo de cavalo fraco, às mechas fracas. Sua companheira
inseparável é Lili. Ela é uma poodle simpática sempre descansando à sobra das
pequenas árvores da rua ou na porta de uma das lojas. Ninguém reclama de sua
presença. Rafael e Lili passam os dias, no horário comercial, ali naquela
calçada da rua mais movimentada do bairro. Ele tem um comércio de livros
usados. Sim, um sebo em plena rua. Seus títulos são sempre bons. Ele ganha
muitos livros daqueles que precisam de espaço em suas casas. Mas só põe à venda
as coisas boas. Sim, vai de atlas geográfico até Machado de Assis. Passa por
Dan Brown e Frederick Forsyth, que ele considera os mais populares. Rodam ali
naquelas ripas pregadas na parede onde ele equilibra os livros e no pedaço da
calçada onde os distribui autores como James Joyce, Mark Twain, Dickens, Victor
Hugo, Mann, Shakespeare, Balzac, Saramago, Veríssimo, Drummond, Paulo Coelho, J
Amado, J de Alencar, C Meirelles e não acaba mais. No chão é possível encontrar
também Zibia Gasparetto e DVDs originais. Sempre bons filmes. E Rafael está
sempre lendo. Mas nunca vi quais os títulos de sua leitura. E a rotina segue
com frio ou no calor insuportável do último janeiro. Ele e Lili, ali, firmes.
Rafael tem um velho Passat, daqueles que
fizeram sucesso no Iraque. É ali que guarda, leva e traz seu comércio. Ele
poderia fazer outra coisa que lhe desse um ganho melhor. Ou poderia simplesmente
vagabundear lá pelo seu bairro. No entanto escolheu algo que, com justiça,
considera nobre. E gosta de falar com aqueles que se interessam pelos seus
produtos ou fazem encomendas. Sim, ele aceita encomendas. É um sebo a céu
aberto que traz charme para as lojinhas da rua. Não é um sujeito comunicativo.
Tampouco simpático à primeira vista. Ele não tem o sobrenome Herz, da família
que empreendeu na Livraria Cultura. Mas isso é só um acidente de percurso. Ele
é filho fora do casamento de um baiano que morreu no ano passado e muito pouco
parece ter-lhe dado. E por conta disso ele teve que ir até o sertão baiano, 2.018
km de distância, levando Lili, para assinar o inventário junto com os irmãos
legalizados. E espera receber seu quinhão do sítio que o pai deixou. Tivesse
tido outras condições na educação e os Herz teriam um bom concorrente hoje.
Falo dele porque ontem o encontrei triste com sua Lili puxada na guia, magra e
com visível queda de pelos. Explicou que está aflito porque a parceira está com
uma diabetes avançada, descobriu há dias. E que a insulina, como a ração especial
são caras. Também, explicou de novo, a vida toda ela comeu por ali o que lhe davam
arroz, feijão, pedaços de frango e até batata. O veterinário explicou que isso
pode ter agravado. Desejei o melhor para os dois e dessa vez nada comprei.
Segui pensando que o livreiro de rua terá uma jornada ainda mais sofrida com a
perda da companheira que, oxalá, completará dez anos em agosto.
2.
Amanda é uma moça baixinha
entre 18 e 22 anos. Tem um rostinho bonito com um pouco de acne em cada uma das
bochechas. E a conheci ali perto dos caixas eletrônicos do banco, onde ela ficava
para auxiliar os clientes. E conversávamos sempre que lhe tinha que pedir para
carimbar o meu bilhete do estacionamento para o devido desconto no pagamento.
Amanda mora em Osasco e tem uma jornada longa todas as manhãs entre trem e
ônibus para chegar ao trabalho. Perguntando sobre seus estudos, ela disse que
aguardava ser contratada pelo banco para então “fazer faculdade” e tentar
carreira naquela instituição. Precisava do magro salário que lhe pagavam para
ficar das onze às dezesseis horas atendendo a idosos confusos e trabalhadores
que precisam sacar seus salários também minguados. Um dia ele se disse
preocupada. Explicou que estava à espera de um avaliador que a entrevistaria
sem se identificar. Era o sujeito que tinha o poder de vida ou morte sobre seu
emprego. Eu a tranquilizei: bobagem, você é boa no que faz. Mas tive certo
arrepio. Amanda é do tipo bem ingênuo, quase simplório, ainda que amável e
prestativa. E naquele momento do nosso diálogo ela me disse: olha vem vindo aí
o Alberto. Ele é um assistente de gerencia da agência. Ele se acha importante e
não me cumprimenta. Uma vez pedi uma explicação para ele e sua resposta foi
grosseira, disse que eu sou burra e não sou funcionária do banco. Pode? Não,
não pode, disse eu. Então o Alberto passou. Altivo, dono de seu poder de
polichinelo. E não olhou para Amanda. Uma acintosa agressão. Coisa de almas
cruéis. Então, vez em quando eu perguntava à Amanda sobre o entrevistador
oculto. Nada ainda, dizia. O cara se identifica depois do diálogo. Na semana
passada, depois de dias sem ver minha amiga dos caixas eletrônicos, perguntei à
moça que a substituía por onde andava Amanda. Ela saiu, respondeu a moça. Em
que posso servi-lo?
Fiquei triste. O perfil de Amanda não parecia
adequado à dose de agressividade que se nos exige o tal do mercado. Ela não foi
efetivada na instituição bancária. Poderia atrapalhar nos rendimentos do banco,
que com tanto suor ganha migalhas no Brasil. Mas nada me tira da cabeça de que
o tal do Alberto, cabeça alta e desprezando a nossa menina tão singela, tem a
ver com isso.
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