Quando eu tinha entre oito e dez anos, na
longínqua Araçatuba, um dos meus passeios favoritos de bicicleta era ir até a
estação ferroviária da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, NOB. Gostava do que
via.
A praça em frente à estação era calçada
com paralelepípedo e sombreada por várias árvores de fícus. Aquele calçamento
me lembrava São Paulo e eu gostava de curtir aquela micro paisagem
transportando-me para a Capital, seus bondes e seu movimento metropolitano.
Mas para além dos paralelepípedos,
gostava de procurar na plataforma de embarque\desembarque por uma preciosa e
anunciadora mercadoria: as latas com os filmes que seriam exibidos nos cinemas
da empresa exibidora Pedutti. Era com certo deleite que via, ali no chão da
estação, os títulos dos filmes pregados naquelas latas redondas: East of Sumatra ou Flash Gordon on The Planet Mongo.
Corta para 2012.
Minha amiga Madrasta (o carinhoso
apelido resulta da personagem que ela interpretou quando adolescente – também em
Araçatuba – numa versão que dirigi de A Gata Borralheira) que é esportista
adepta do pedestrianismo e faz
exercícios regularmente pelas ruas da USP correndo em média doze quilômetros por
dia, me mostrou um brinquedinho novo. Trata-se de um relógio de pulso que mede
e registra diversos dados do corpo humano durante os exercícios: pressão
sanguínea, batimentos cardíacos, quantos metros correu, qual a velocidade
média, o comportamento da pressão etc.
Corta para 2013.
Leio no jornal sobre dois assuntos
correlatos às minhas lembranças acima.
Primeiro sobre o cinema. Os rolos, que
já não são mais utilizados e foram substituídos pelos discos digitais, ficarão mesmo
nos museus e cinematecas. Isso porque os grandes estúdios e distribuidoras
estão finalizando sistemas de transmissão de seus filmes, para os cinemas, via
satélite.
No Brasil a Ancine, Agência Nacional de
Cinema, estabeleceu o prazo de 2014 para que todos os cinemas substituam os
projetores analógicos pelos digitais. O sistema digital, embora dispense as
fitas em celuloide, ainda usa aparato físico em razão do uso dos DVDs e sua
gravação.
Já o novo sistema, via satélite,
dispensa tudo isso.
Com uma antena de 2,5 metros, softwares
de segurança para impedir que os arquivos sejam copiados ou que os exibidores
reproduzam os filmes em mais salas do que as contratadas, as empresas
exibidoras podem receber os filmes, simultaneamente, para mais de 150 salas em
50 diferentes cidades do país.
A empresa SES Global, baseada em Betzdorf,
Luxemburgo, já foi contratada por empresas brasileiras para fazer essa
distribuição a ser consolidada de vez em 2014. Ou seja, latas redondas com
filmes de celuloide, como aquelas da estação da NOB ou como as que pegaram fogo
e cegaram o protagonista de Cinema
Paradiso chegaram mesmo ao fim.
A novidade é uma tecnologia cercada de
diferentes aspectos de segurança no mesmo padrão já utilizado por um consórcio
das grandes empresas estadunidenses como Disney, Paramont, Universal, Lionsgate
e Warner Bros, que leva o nome de Coalisão
de Distribuição Digital de Cinema, DCDC.
Com custos variando entre 250 e 300 mil
reais para a adaptação do equipamento que recebe o filme via satélite, as
empresas distribuidoras consideram menos onerosa e mais segura essa forma do
que o sistema digital hoje existente que demanda maiores cuidados e ainda pode
ser vítima de pirataria.
De olho na maximização do uso de seus
espaços, os exibidores já farejam possibilidades de exibição, ao vivo, de
grandes eventos em suas salas como jogos da Copa do Mundo, grandes conferências
mundiais, Olimpíadas e outros.
Estamos a poucos passos de transformar “É
tudo verdade” (Festival Internacional de Documentários) em “É tudo ao vivo”.
Imaginemos um cinema que mantenha um canal direto, via satélite, transmitindo
horrores da guerra na Síria ou as barbáries de países do Chifre da África.
E sobre o brinquedinho da Madrasta?
Ah, sim.
Trata-se da tendência que vem se
consolidando da chamada Wearables ou Tecnologia de vestir.
É como estão sendo chamados os
computadores em formato de roupas e que podem medir e monitorar as atividades
físicas do indivíduo e conectados a um smartphone ou tablete podendo
inclusive checar a fertilidade das mulheres.
As líderes em pesquisas nesse campo são
a Sansung, a Apple e a Google. As menores, mas nem tanto, respondem pelos nomes
de Pebble, Fitbit, Misfit, Wearable, Withings, Life Comm e outras. Trata-se de
um mercado com grandes possibilidades e que tem como foco as empresas de seguro
saúde.
No Brasil a empresa Carenet está
lançando o seu primeiro produto no gênero, o Biosensor. Importado de um
fornecedor asiático o produto tem a promessa de nacionalização e deve custar
entre 200 e 300 reais.
De acordo com a empresa de pesquisa ABI
Research, a venda desses aparelhos de vestir podem chegar em 2013 a 53 milhões
de unidades batendo 340 milhões em 2017. De acordo com as pesquisas, esse
crescimento será alavancado pela entrada das grandes como a Samsung e Sony
nesse tipo de negócio.
Para os entendidos no assunto, “O pulso será dominado pelos relógios
inteligentes dos grandes fabricantes. A oportunidade está em outras partes do
corpo”.
Nessa perspectiva, a Misfit lançou um
monitor do tamanho de uma moeda de um dólar que pode ser usado como um
ornamento ou pendurado em qualquer parte do vestuário do usuário.
É hora de nos rendermos às tecnologias.
George Orwell não sabia das coisas. Pelo menos não de todas elas.
Mas uma constatação, de há muito está
feita: não só as latas com filmes na estação do trem perderam o espaço no
cinema. Os relojoeiros suíços, também de há muito, perderam para os japoneses
no negócio de marcar as horas.
A abordagem para iniciar assuntos
perguntando sobre a hora também já se foi há muito. Mas imaginemos como poderia
ser em 2016: ele olha para ela que toma água de coco numa barraquinha do Parque
Vila Lobos (pode ser no Central Park também...) e pergunta: como estão os seus
batimentos?
(Dados no Valor Econômico © 2000 – 2013)